Respostas do Dr. Julio Cesar Walz as questões propostas pelo jornalista Ticiano Osório da Zero Hora.

Dr. Julio é Psicólogo Clínico, Psicanalista, Dr. Em Ciências Médicas – Psiquiatria (UFRGS), Professor na UNILASALLE – Canoas, Autor do livro: Aprendendo a Lidar com os Medos: A Arte de cuidar das Crianças (ebook: www.criandoconsciencia.com.br) e Co-autor do livro: GUEDES, Paulo S.R. e WALZ, Julio C. O Sentimento de Culpa. (ebook: www.criandoconsciencia.com.br)

 

1)  Como enfrentar os tempos difíceis? Grande parte da população nunca viveu situação semelhante. Tem, no máximo, a memória de quem viveu a Segunda Guerra Mundial, talvez a dos anos de chumbo da ditadura militar. Os jovens sequer experimentaram a tensão mundial provocada pelo 11 de Setembro, em 2001. Como lidar com a imposição do isolamento e das severas restrições à diversão e ao entretenimento (esporte parado, cinemas com tendência de fechamento, shows cancelados etc.)?

R: Nossas respostas comportamentais geralmente são inadequadas às situações que vivemos cotidianamente. É um fato. Nós mesmos ou nossa própria experiência diária confirmam isso. Geralmente, interpretamos mal o que está acontecendo, o que o outro disse, as razões de tais eventos etc. Claro, podemos não nos dar conta de nossas inadequações, especialmente quando agimos com a certeza ou a crença de que o que estamos pensando é verdade e apenas nós sabemos o que é o melhor. Assim, a realidade, ou que está fora de nós ou o “outro” não nos tira de nossa crença absoluta ou nos deixa inquietos conosco mesmos. Atropelamos a realidade ou o fora de nós e impomos a ela o que queremos pensar e sentir. Sem nenhum tipo de interação.

A inadequação de nossas ações pode se tornar mais grave quando não aceitamos que a vida não é como pensamos. Ou seja, se não aceitarmos emocionalmente que a vida é maior do que nossos pensamentos e desejos, maiores serão nossas dificuldades em resolver os problemas. Se não entendermos essa “máxima” ao longo dos anos, mais difícil ficará nossa capacidade de lidar com tempos difíceis. 

A rigor, todos os tempos são difíceis, porque a vida nunca é como pensamos. Nunca. Mas quando ainda se somam dificuldades que nos deixam expostos à incerteza e ao sentimento de desamparo, mais dramática e obscura, especialmente em termos de coletividade, fica nossa capacidade de lidarmos com os desafios demandados por situações inusitadas e novas. Quando o coletivo se move pelo medo, o pavor individual aumenta. Os problemas ficam mais irreais e infinitos e, assim, em contrapartida, mais os salvadores ou pessoas irrealistas ou onipotentes nos atraem ou chamam a atenção e nos oferecem a sensação de nos proteger do sentimento de desamparo. E aquilo que é real deixa de ter valor porque fica insuficiente para nos acalmar quando estamos “desesperados”. Daí a necessidade profunda de acreditarmos em delirantes, desonestos e aproveitadores. E nessa hora, quando estamos nessa lógica delirante, paramos de pensar, ou o pensar se torna obsoleto. E ainda estendemos um tapete vermelho para mais ainda nos cegarem ou oferecerem a ilusória segurança através das mentiras que passam a ser “verdades” porque prometem a sacralidade do eterno sem problemas. Queremos a sensação da certeza e não o pensamento que nos obriga a agirmos de forma real e com dificuldades naturais e inerentes ao viver.

Assim, eu diria que se não tomarmos os caminhos do pensamento onipotente (a crença de que o que estamos pensando é verdade irrestritamente) as restrições não serão sentidas como severas. Serão apenas medidas necessárias e pactuadas pelo grupo para que possamos resolver logo nosso problema. Se aceitarmos que isso que está acontecendo, mesmo que seja contrário ao nosso desejo, faz parte da vida e do viver e que passará, poderemos agir de forma positiva, criativa e interativa com um propósito de autocuidado, em que a restrição não será sentida como cadeia, mas como uma proteção a favor da vida. Ou seja, a raiva de não poder cederá e poderemos criar soluções possíveis e reais e que nos acalmem em meio à turbulência inerente ao viver.

 

2) Fala-se muito em como o isolamento social é fundamental, mas também se fala sobre a importância da solidariedade, de ajudar quem precisa de ajuda. Como equilibrar as duas coisas?

R: Não sei se se trata de equilíbrio, mas de realismo, digamos assim. A vida nos trouxe esse momento bastante delicado, a da intensa transmissão de um vírus de alto impacto na saúde da coletividade mundial e com custos sociais e econômicos muito fortes na vida cotidiana de cada ser humano na face da terra. Ao mesmo tempo, temos a “sorte” de já termos conhecimento sobre o que fazer para diminuir o pico de transmissão e, logo a seguir, alguma intervenção médica eficaz, baseada em muito estudo e amor à realidade, deverá surgir. Nesse sentido, falar em isolamento social é apenas e exclusivamente uma questão prática de cuidado e nada mais. Não se trata de desamor, de perseguição, de querer confinar as pessoas para sofrerem ou alguém estar nos enganando. Claro que sempre haverá alguém tentando tirar uma vantagem da situação, mas em geral saberemos lidar com os “espertinhos” econômicos, sociais e políticos. Então, se todos soubermos que o barco é um só, que ele nos pertence, que todos estamos navegando nele, a solidariedade surgirá de forma espontânea, pois ajudar alguém é, direta ou indiretamente, uma ajuda a nós mesmos. Lembremos que todos estamos navegando na mesma nau. 

Existem várias formas de ajuda, e tenho certeza de que a criatividade surgirá de forma lúcida e realista quando tivermos ou buscarmos a clareza das informações vindas de especialistas e não de lunáticos, isto é, se soubermos bem do que se trata o vírus, como ele se transmite, nosso medo ou receio ficará menor e acharemos formas de ajudar aos que estão em maiores dificuldades. Assim, não precisamos lidar com o problema como se fosse simples amor ou desamor, ou um castigo.

 

 

3) Os idosos são grupo de risco. Por um lado, precisam de carinho, inclusive dos netos, mas, por outro, precisam estar protegidos de contato. Novamente, como encontrar um equilíbrio, para não acentuar uma possível solidão ou mesmo depressão?

R: Grupos de risco somos todos nós, porque podemos ter o risco de uma complicação em decorrência do vírus ou sermos um risco de transmissão dele. Ninguém está imune nessa navegação.

Não quero ser simplista dada a gravidade do problema, mas como disse acima, todos precisamos saber que o tema do isolamento não se trata de desamor. Trata-se de cuidado. Não visitar o avô, a avó, ou visitar usando máscaras, ou usar algum aplicativo para a conversa é apenas e exclusivamente cuidado. As crianças precisam dessa clareza, e os idosos também precisam. Precisamos, cada um de nós, lutar contra a ideia de que se estamos sozinhos é porque necessariamente não gostam de nós ou não somos importantes. Até podemos sentir isso, mas acreditar nisso convictamente é uma tentativa de manipulação do outro ou de controle. Essa sensação, em geral, é irreal. Mas se for verdadeira, tenho certeza de que não foi agora que surgiu. Aí não é um problema do “vírus”. Agora se ele, o vírus, for sentido assim, como um estranho odioso que separa as pessoas ou cria problemas de todos os tipos nas relações pessoais, estaremos nos enganando. O vírus não nos separa. Ele apenas é um “ser” que estamos tentando driblar ou enganar para que não nos faça adoecer. E para isso é necessário o cuidado do afastamento para que possamos, logo a seguir, brindar a alegria do reencontro.

 

 

4) Como abordar o assunto com as crianças e os adolescentes? Como explicar a gravidade do corona vírus sem escorregar para o pânico? Ou é o caso de instilar medo?

R: Informações claras e precisas não geram pânico. Ou melhor, não geram o sentimento de “sem saída” – com informações honestas e verdadeiras  podemos fazer algo e sair do pânico. Além disso, normalmente geram boas ações de autocuidado, claro está, desde que nosso pensamento não esteja voltado para o pavor e a onipotência. Daí saberemos buscar com calma as informações e aceitar os recursos reais e possíveis. 

O medo não ensina, ele apenas domestica. O pânico é gerado porque já antes estamos em pânico ou porque somos nervosos naturalmente diante das dificuldades.  Isso não é um problema, cabe ressaltar. É apenas o jeito que conseguimos construir para viver. Mas precisamos saber que, se somos assim, assustados, mais vulneráveis somos para buscar milagreiros. E quando somos assim, é importante termos o cuidado conosco para não enveredarmos pelo caminho da onipotência ou da busca de soluções mágicas. Essa é a melhor estratégia para cada um com si mesmo. 

Existe uma máxima, da psicanalista Françoise Dolto, de que tenho profunda convicção: “as crianças suportam a verdade melhor que os adultos”. Isso não significa falar no assunto de qualquer forma, do tipo largar a bomba e sair correndo, ou falar num tom de terror. Apenas a verdade é suficiente. Na verdade e na clareza, não há drama. Há informações e indicação de coisas que se podem fazer para que não fiquemos sem saída. E nesse tom, as crianças vão interagindo, fazendo perguntas e inclusive nos propondo soluções para que elas também não se sintam sem saída, e até podem ter ideias que nunca teríamos por nós mesmos.